Madalena respirou fundo quando chegou ao pátio da fazenda e mirou a casa de sua infância. São exatamente vinte anos longe daqui. Não pela sua escolha, mas por forças das circunstâncias, ou melhor, obrigada por seu pai. Sem querer, todos os acontecimentos passaram diante dos olhos, enquanto descia do seu velho e conservado fusca, enquanto o corretor a aguardava em sua pick-up estalando de nova. Era uma ironia do destino caso atentasse para os fatos, mas, felizmente, não possui ambição nenhuma. Deseja apenas o que é seu por direito. Aquela fazenda, comprada por seu pai com a herança de sua mãe custou muito sangue e ela não deseja sujar as suas mãos com ele, muito pelo contrário, deseja sim lavar as mágoas do passado, ressarcindo as pessoas em seus direitos. Pegando as chaves das mãos do corretor, seguiu em passos firmes, galgou os degraus e colocou-se diante da porta dupla e carcomida pelo tempo. O ruído da chave na emperrada fechadura ecoou no recinto ao mesmo tempo em que as portas do tempo abriu a sua memória. "Abaixe um pouco essa música, menina, ralhou a mãe com carinho. Mas Madá, como todos a chamavam, nem ligou rodopiando em seu lindo e rodado vestido que a próprio mãe confeccionou para ela enfeitar-se naquele natal. Era um vestido rodado, vermelho com poás brancos e todo o peito bordado em pedrarias. Uma riqueza, um luxo só. O seu pai, desceu as escadas, e tomando-a pelas mãos, rodopiaram pela sala, ao som das músicas natalinas". Abrindo a porta, com lágrimas nos olhos, Madá agradeceu a ideia de deixar o corretor lá foram enquanto faz sua última incursão pela casa, pelas boas e dolorosas lembranças. Com passos pequenos e vagarosos, foi caminhando e descobrindo os poucos móveis que, originais, resistiram ao tempo e ao descaso dos últimos moradores. Percebeu que do tempo de sua mãe nada mais restava naquela sala. Sorte a dela que já havia levado o álbum de família e um vestido de brocado preto e dourado, que nunca saiu de moda e que algumas vezes ela usa. O resto, tudo foi vendido ou perdido entre as pessoas que lá frequentaram. A sua visita tinha dois objetivos, despedir-se de sua infância feliz e da infeliz adolescência e reaver as joias guardadas por sua mãe num recanto que ninguém nunca ficou sabendo. Toda a derrocada começou quando seu pai descobriu, pelo médico, que sua mãe não poderia mais ter filhos, sob o risco de morte. No princípio ele ainda tentou fingir, mas, com o passar do tempo, percebeu que a coisa era mais séria do que pensava e não dava mais sossego para a mulher. O que ele não sabia era que a esposa já estava preparando tudo para a vida da filha fora dali, mas nem mesmo Madá sabia do que se passava. Até que um dia, depois de estupros seguidos, sua mãe engravidou novamente e veio a falecer no hospital. Poucos dias depois, Ignácio foi chamado para a fazenda e tornou-se o capitão-mor dos “escravos” como ele mesmo chamava os empregados. A maioria que pôde preferiu deixar a fazenda levando apenas os seus pertences. Quem ficou colocou-se ao lado dos desmandos de Ignácio e da delapidação dos recursos da família. As festas e as mulheres multiplicaram-se como se sua mãe nunca tivesse existido. E assim Madá resolveu fugir. Com apenas dezesseis anos, sabia dos riscos que correria, mas preferiu tentar a viver aquela vida desregrada. O pouco dinheiro que encontrou nos pertences da mãe serviu para ganhar a cidade e dali para outro estado. Aproveitando uma noite em que o pai e o primo estavam com suas mulheres, completamente bêbados, ela juntou uma pequena mochila e amarrando uma pequena bolsa junto ao corpo, jogou um beijo para o retrato da mãe e ganhou o mundo. Caminhou até uma pequena casinha que ficava próxima a um portão que já não era mais usado na fazenda e ali fez sua primeira transformação. Cortou os longos cabelos negros, fazendo um desfiado torto e amarrou um leve xale na cabeça e aguardou o ônibus que por ali passaria. Cochilou e entre sobressaltos, conseguiu amanhecer. Sua fome foi minorada com uns biscoitos, única coisa que caberia para levar e logo a condução chegou. Poucos eram aos passageiros que iam para as fazendas vizinhas, e sonolentos, nem repararam nela. Chegando à rodoviária procurou o primeiro lugar mais distante que o dinheiro chegasse para a passagem e ainda ficar com alguns trocados. O ônibus saiu e, felizmente, ninguém perguntou nada e nem o banco ao lado foi ocupado. Dormiu até o fim da viagem. O motorista fez o favor de acordá-la. Agradeceu a gentileza e procurou um barzinho para tomar um café. O cheiro da comida sendo pronta fez roncar o seu estômago, mas não poderia comer nada sem antes arranjar um lugar para ficar. O café cumpriu sua missão de mantê-la. Saiu da rodoviária e seguiu pela pequena pracinha. Naquela hora eram poucas as pessoas na rua. Bom, porque não queria chamar a atenção. Chegou diante do portão da igreja, sempre aberto como deve ser, entrou e sentou-se no último banco daquele recinto silencioso e úmido. As lágrimas vieram de roldão e a jovem chorou todas as suas desventuras. Ainda soluçava quando sentiu uma leve mão no seu ombro e aí percebeu que havia pegado no sono. _Você está se sentindo bem, minha filha? – perguntou uma senhora com o rosto próximo ao dela. Madá sacudiu a cabeça e começou a chorar novamente. A boa mulher sentou-se e a levantou para um abraço. Aos poucos ela acalmou-se e pôde falar. _Minha mãe morreu há seis meses e precisei fugir de casa. – resolveu contar a verdade, pois de nada servia mentir. _Meu pai e meu primo enlouqueceram e a vida está insuportável na fazenda que era de minha mãe. São festas, mulheres perdidas, bebidas e drogas. Nunca mais quero voltar lá. E como sou menor, restou-me apenas fugir. Deixei a escola e os poucos amigos já não freqüentavam minha casa ultimamente. A maioria dos funcionários foi embora e tudo vai se acabando com o tempo. A mulher, enternecida, nem quis saber da veracidade da história, pegou-a pela mão e levou-a para uma pequena cozinha anexa à sacristia, onde tinha café com bolo e pães. Deixou a moça comer à vontade e voltou aos seus afazeres. Quando ela terminou voltaram a conversar. Madá, em lágrimas, vai passando as mãos nos poucos objetos que ali ficaram e separa um e outro para levar consigo. Enquanto faz isso continua suas reminiscências. Depois de sua chegada a Oceanópolis, como ficou sabendo se chamar aquela cidadezinha, e de ser salva por dona Firmina e padre Antônio, Madá terminou os seus estudos e ficou morando junto com a senhora até a sua morte. Hoje, tem o seu pequeno comércio de roupas em geral, nessa mesma cidade que a acolheu com tanto carinho. O tempo passou. Seu pai e Ignácio morreram em sua estúpida vida de devassidão e agora ela aqui está reencontrando com o passado. Arrastando um pequeno oratório que sua mãe sempre conservou limpo e florido encontrou um tijolo diferente dos outros, mas somente os olhos treinados saberiam o que era. Tirou um pequeno jogo de ferramentas da bolsa e começou a descascar a parede. Logo o tijolo estava exposto e com uma fina e resistente espátula o retirou do lugar. O tijolo abriu um espaço grande de onde retirou um pacote de papel amarelo grosso, firmemente amarrado por uma corda de sisal. Com reverência, ela retirou o pacote e sacudindo a poeira da velha colcha sentou-se onde sua mãe dormiu antes de ir para o hospital. Abriu o embrulho e encontrou uma grande quantidade de peças valiosas que sua mãe guardou durante toda a vida, longe dos olhos do seu pai. Talvez tenha até mesmo sofrido maus-tratos, mas nunca disse uma palavra sequer sobre a fortuna. Engolindo a emoção, Madá guardou tudo novamente e colocou em sua bolsa juntamente com as ferramentas. Colocou o tijolo diante do buraco e empurrou o pesado móvel para o seu lugar. Até mesmo os santos do oratório seu pai vendeu, constatou a mulher, tristemente. Terminou sua revista, fazendo uma pequena oração para todos os que ali viveram. Em seu coração não há mais mágoa e deseja fortemente que o Senhor permita um dia encontrar novamente com a mãe. Em seus sonhos isso sempre acontece, mas há o retorno nos melhores momentos. A sua fé diz que um dia esse encontro vai acontecer. Quanto ao seu pai e Ignácio estão entregues ao Senhor da Justiça. Bateu a porta e girou a chave sem sombras de dúvidas. Ao vê-la sair o corretor aproximou-se e perguntou se estava tudo bem. _Sim, meu amigo Cícero. Tudo bem com o meu passado. Encontrei esses dois objetos que pertenceram a minha mãe e vou levá-los comigo. Tudo mais está por sua conta e do dr. Vargas. Quando tudo estiver terminado, todas as contas e pessoas pagas, caso sobre algum valor farei uma doação para o orfanato do padre Antonio. – disse a moça entregando as chaves nas mãos do corretor. Ele, espantado, ficou olhando aquela bela mulher entrar em seu simples fusca e dar as costas àquele mundaréu de terra, que com certeza vai valer milhões. Em sua estreita visão financeira, não entende como isso é possível. Enquanto isso Madá liga o seu celular com sua playlist sertaneja e vai adiante para o RECOMEÇO de sua vida. FIM Regina Madeira "imagem do Google" Regina Madeira
Enviado por Regina Madeira em 03/04/2018
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